A viagem dos cientistas da Universidade Católica de Brasília (UCB) ao Círculo Polar Ártico, iniciada neste sábado (26/7), é especial por si só: o grupo de estudantes e professores da instituição de ensino superior vai coletar amostras de plantas que podem ser úteis para, entre outros fins, tratamentos contra cânceres.
Contudo, a partir de outro ponto de vista, é possível perceber um motivo ainda mais nobre: a oportunidade pessoal e profissional oferecida a duas universitárias que embarcam rumo ao norte europeu.
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As alunas em questão são a estudante de farmácia Thaíssa Mendes, 22 anos, e a odontóloga em formação Maria Karollina Gonçalves, 30. Com passagens e estadia custeadas pela UCB, essa será a primeira vez que as jovens vão viajar ao exterior.
Além disso, Thaíssa e Maria Karollina estudam com bolsa 100%, garantida pelo Programa Universidade Para Todos (Prouni), do governo federal.
Crias do ensino público do Distrito Federal e do Entorno, ambas sempre se viram muito longe de chances como essa. E, cinco anos atrás, parecia impossível cursar o ensino superior – quem dirá imaginar uma ida ao Ártico –, como elas mesmas contaram em entrevista ao Metrópoles.
Veja imagens do grupo de pesquisadores:
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Thaíssa Mendes, 22 anos
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Maria Karollina Gonçalves, 30 anos
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Marcelo Ramada, doutor em biologia molecular e coordenador do Briotech
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Stephan Dohms, doutor doutor em ciências genômicas e biotecnologia e vice-coordenador do Briotech
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Alunas e professores da Universidade Católica de Brasília (UCB) vão ao Círculo Polar Ártico neste sábado (25/7)
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Estudo faz parte do projeto Briotech, da UCB
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Grupo vai colher amostras de briófitas para estudos
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Essa é a primeira vez que as duas universitárias vão viajar ao exterior
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Projeto analisa briófitas desde 2019
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Briófitas – ou musgos – são pequenas plantas conhecidas por não terem vasos condutores de líquidos (seiva)
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Briófitas suportam temperaturas extremas, frias ou quentes
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Espécies de briófitas no laboratório de biologia molecular da UCB
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Amostra de briófitas
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Entenda o motivo da viagem
- Dois professores e duas estudantes da UCB viajam, neste sábado (26/7), rumo à região da Lapônia, mais especificamente na Finlândia e na Suécia, para uma expedição científica no Círculo Polar Ártico.
- Os pesquisadores vão coletar amostras de plantas briófitas – ou musgos – nativas da região.
- Alguns estudos demonstram que essas espécies têm potencial para combater bactérias resistentes, serem usadas na indústria dos cosméticos, melhorar genes na agricultura, auxiliar no tratamento de cânceres, entre outros.
- As briófitas coletadas pelo grupo serão cultivadas em laboratório, para posterior extração de compostos com interesse biotecnológico.
- A ideia envolve entender melhor o comportamento dessa plantas enquanto grupo, como são as variações de informação genética delas e de que forma isso pode se relacionar a vegetais de interesse econômico, como soja, milho, feijão e arroz.
- Toda a coleta foi viabilizada pela Embaixada do Brasil em Helsinque, capital da Finlândia, antes da viagem, o que permitirá ao grupo trabalhar no país europeu de maneira legal.
- Os dois professores que comandam a expedição fizeram sete viagens desse tipo anteriormente e participaram da primeira expedição científica brasileira ao Ártico, em 2023.
- Agora, a meta será comparar amostras de plantas de diferentes regiões dos polos Norte e Sul do planeta.
- Para além das atividades científicas, a missão tem caráter diplomático, pois os quatro cientistas da UCB farão uma visita à Embaixada do Brasil em Helsinque, onde vão se encontrar com o embaixador Luís Balduíno.
Conquista de vida
Poder viajar ao Círculo Polar Ártico e estudar as briófitas, plantas valiosas para diversas indústrias, é uma recompensa aos diversos desafios vencidos por Thaíssa e Maria Karollina, desde antes da entrada na universidade.
Thaíssa, por exemplo, cursou o ensino médio no campus de Luziânia (GO) do Instituto Federal de Goiás (IFG) e se formou no início de 2022, durante a pandemia da Covid-19. Porém, ela sentia que o distanciamento social e a falta de contato presencial com professores a deixava distante de uma aprovação no ensino superior.
“Fiz o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] para entender como ele funcionava, mas pensando que não seria aprovada. Quando saiu o resultado, eu me inscrevi no Prouni só por curiosidade e coloquei a UCB como primeira opção. Para minha surpresa, passei na primeira chamada”, recorda-se.
Uma vez aprovada, surgiram outros obstáculos. Thaíssa enfrenta diariamente duas horas no transporte público para sair de casa, em Luziânia, no Entorno do DF, e chegar ao campus da UCB, em Taguatinga. O trajeto de volta tem a mesma duração.
“O tempo [de deslocamento] poderia ser usado para outras atividades aqui [na universidade]. Mesmo assim, tento fazer o máximo de coisas possível”, comenta a jovem, que se forma no fim deste ano.
Emocionada, a estudante de farmácia agradece pela chance da viagem ao Ártico. “Não acredito até agora. É muito legal ter essa oportunidade sendo bolsista. Estou muito, muito feliz de poder conhecer um país diferente e fazer essa pesquisa”, completa.
Sonhos da família
Uma das grandes amigas de Thaíssa na universidade é a estudante de odontologia Maria Karollina, que também participará da expedição científica.
Karol, como é carinhosamente chamada, tornou-se uma verdadeira representante da meta de vida da mãe. “Ela me deu à luz muito nova e não pôde estudar, mas tinha esse sonho. Só que, por se dedicar à minha criação, precisou trabalhar cedo”, relata a jovem.
“Ela sempre quis eu tivesse a oportunidade de fazer o que tivesse vontade. E dizia que, diferentemente dela, eu podia ser quem quisesse, pois o fato de ela não ter tantas condições não seria um impedimento.”
A universitária não tinha a odontologia como primeira opção e almejava passar em medicina em uma universidade pública. Moradora de Samambaia Norte, ela conta que sempre contou com o apoio da mãe para isso. No entanto, com o tempo, abriu o coração para outras profissões e, em 2022, foi aprovada na UCB no curso atual.
“Minha mãe sempre falou: ‘Você não precisa estudar e trabalhar’. Enquanto quiser, vai estudar, e vou te manter’. Só que vamos ficando mais velhas, e isso vai pesando muito. Mas ela disse: ‘Se não tiver vontade, não precisa ficar nesse curso. Pode continuar a estudar, e vou te manter, porque quero que você faça o que sonhou’”, relembra Karol.
Depois de perceber que não estava no curso por obrigação, que poderia parar se sentisse necessidade e que tinha a possibilidade de começar de novo, Maria Karollina sentiu alívio. Ela continuou na odontologia e, posteriormente, descobriu-se apaixonada pela área.
“Se não fosse o Prouni, eu não teria condições. Mesmo com a bolsa de 100%, esse curso é muito caro. Tudo que minha mãe guardou a vida dela toda para dar entrada em uma casa foi usado para comprar o material de estudos”, detalha.
A estudante também diz que chorava quando precisava comprar esses itens. “E ela [a mãe] perguntava: ‘Por que você está assim?’. E era porque eu via o dinheiro da vida dela ali. Mesmo assim, ela sempre falava: ‘A gente dá um jeito’”, conta.
Confira o roteiro da viagem:
Potenciais das briófitas
Além de Maria Karolline e Thaíssa, os professores Marcelo Ramada, doutor em biologia molecular, e Stephan Dohms, doutor em ciências genômicas e biotecnologia, também vão ao Ártico.
Os dois são, respectivamente, coordenador e vice-coordenador do projeto de pesquisa Briotech, dos quais Karol e Thaíssa fazem parte junto a outros 12 estudantes.
O Briotech surgiu em 2019 na UCB, com objetivo de explorar os polos Sul e Norte do planeta. O programa conta com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Em resumo, briófitas são plantas que não têm vasos condutores de seiva – líquido que circula por dentro de algumas espécies de vegetais. Geralmente miúdas, elas são encontradas em locais úmidos, mas suportam altas temperaturas, segundo detalha o professor Stephan Dohms.
“Por serem plantas pequenas, pensamos que elas não são tão desenvolvidas. Mas, na verdade, elas têm uma capacidade de responder muito bem ao meio ambiente”, diz Dohms.
E uma prova disso é o fato de elas predominarem nos polos Sul e Norte. “Esses são ambientes muito frios e com incidência maior de raios ultravioleta – o que sabemos ser um complicador para qualquer ser vivo. Porém, apesar de pequeninas, eles têm uma resposta química muito grande.”
O que os pesquisadores tentam entender, portanto, é justamente como essas plantas conseguem responder a ambientes tão extremos. O professor Marcelo Ramada acrescenta que o fato de as briófitas suportarem calor e frio extremos permite inferir que essas plantas podem ser potencialmente usadas em diversos casos.
“A diversidade química que essas pequenas plantas têm pode fazer o que nós descobrimos: novos agentes antitumorais [que agem contra cânceres], por exemplo. Boa parte deles foi inicialmente descoberta a partir de plantas”, destaca.
Ramada ressalta que as briófitas têm “capacidade química extremamente diversa”; contudo, foram pouco estudadas até agora. “Temos possibilidades de aplicação delas com fins cosméticos, pois essas plantas sobrevivem a situações de alta intensidade solar. Então, posso gerar novos protetores e até moléculas antienvelhecimento”, exemplifica.
As espécies podem, ainda, ter genes e moléculas que protegem do frio e da seca plantações de grãos como arroz, feijão, soja e milho. “Essa capacidade de sobrevivência por seis meses sob uma intensidade solar muito alta, e mais um semestre sob ausência de luminosidade, permite a exploração delas para esses fins”, destaca Ramada.
“[Inclusive] no combate a possíveis desabastecimentos ou influências negativas causadas por pragas. No geral, tudo isso acaba por influenciar diretamente no Produto Interno Bruto de um país”, acrescenta o professor.