Como o Rec Beat, festival em Recife, fez 30 anos sem se render à mesmice


Ao unir a batida forte de tambores do maracatu ao som distorcido de guitarras elétricas, Chico Science, nos início dos anos 1990, criou um gênero musical que conquistaria fãs Brasil afora e também no exterior, onde ele e sua banda, a Nação Zumbi, fizeram turnês.

Com letras bem-humoradas e repletas de crítica social, o manguebeat colocou Recife, a capital pernambucana, na vanguarda da produção musical do país. A obra de Science passou a inspirar artistas e despertou a autoestima da juventude da periferia pernambucana ao valorizar as manifestações artísticas de grupos locais e tradicionais.

Foi neste cenário cultural efervescente que surgiu o Rec Beat, festival que também queria colocar a música independente e regional em evidência.

Desde sua criação, em meados dos anos 1990, o evento gratuito se destaca pela curadoria independente, trazendo ao público artistas do Brasil e de diversas partes do mundo, muitas vezes desconhecidos pela maioria da audiência.

“Eu não pergunto o que o público quer ouvir, porque o que ele quer não é o que eu quero mostrar. Assim como o manguebeat foi um movimento periférico, a gente tem esse olhar periférico”, diz Antonio Gutierrez, o Gutie, idealizador do festival.

Para ele, o festival tem de expandir horizontes na música. “Muitas vezes, o artista que toca aqui hoje é aquele que você vai amar amanhã.”

O Rec Beat, então, se consolidou como uma vitrine musical. A cantora Liniker, por exemplo, fez sua primeira apresentação no festival em 2016, ano de seu álbum de estreia “Remonta”, e hoje esgota ingressos para shows em uma hora. Já o grupo BaianaSystem participou do festival em 2011, e agora, em 2025, era uma das principais atrações do palco Marco Zero, o maior do Carnaval recifense.

Na última edição, o Rec Beat, realizado no Cais da Alfândega, entre os dias 1º e 4 de março, reuniu cerca de 60 mil pessoas de pessoas que buscavam fugir do circuito tradicional do Carnaval para experimentar novas sonoridades.

Nesta edição, o evento apostou em artistas de países como Cuba, Venezuela, Bélgica, Uganda, Colômbia, Angola e Portugal. Entre os destaques internacionais estavam a dupla de jazz Yudith Rojas e Niccole Meza, da Venezuela e Cuba, e a rapper angolana Pongo. Entre as atrações nacionais, foram escalados a Banda Uó, de tecnobrega, e os rappers Yago Oproprio, Tássia Reis e Duquesa.

Entre os nomes mais celebrados da programação estava Mago de Tarso, rapper que faz da sua música uma mistura do trap com o brega-funk e tem como maior inspiração Chico Science.

“Eles me chamam de novo Chico/ porque eu sou o caranguejo do trap/ tirando o Nordeste da lama e colocando onde ele merece”, diz em sua canção “Caranguejo do Trap”, que já cruza as 3 milhões de visualizações no YouTube, e resgata as composições e ideais apresentados no álbum “Da Lama ao Caos”, do Nação Zumbi, de 1994.

O show lotado de Mago de Tarso, na segunda-feira (3), em um palco muito próximo do do Marco Zero, onde se apresentavam Gloria Groove e Pabllo Vittar, dois dos nomes mais quentes do pop brasileiro, prova que existe uma demanda do público por novidades. A maioria de jovens entoava suas letras como uma forma de exaltar sua própria identidade.

Mesmo diante da forte concorrência do Carnaval do Recife, Gutie se orgulha de manter o caráter do Rec Beat intacto. “Hoje, muitos palcos tentam emular o que a gente faz, mas eu sempre busco desviar disso. Quero que o festival continue sendo um espaço de descoberta.”

Ele viaja pelo mundo, participa de eventos internacionais e busca artistas que ainda não tiveram visibilidade no Brasil. “Vou para festivais na Colômbia, Canadá, África, França, Espanha. Observo os catálogos, estudo novos nomes e vou anotando tudo em um caderninho”, conta.

Segundo ele, o fato de o festival recifense ser gratuito garante a curadoria independente, mas também expõe fragilidades.

Com um palco na rua, sem uma estrutura grandiosa, o evento se garante apenas na música. Não há ativações de marcas, praça de alimentação, espaços instagramaveis ou de descanso, comuns em grandes festivais. A falta de alternativas e a forte concorrência ao redor faz com que o público oscile muito ao decorrer do evento.

Mas nem isso faz Gutie ceder às tendências do mercado. Para ele, a sensibilidade artística ainda é a diretriz. “Quando escolho uma atração, me coloco na frente do palco como público. Se aquilo me impacta, sei que impactará outras pessoas.”



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